sexta-feira, 12 de outubro de 2012

CULTO AO MARFIM ( Religião Meio Ambiente ) " PARTE III " ( Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança? )

CULTO AO MARFIM

Milhares de elefantes morrem a cada ano para que suas presas sejam transformadas em objetos religiosos. É possível acabar com essa matança?


Foto: Brent Stirton 


Elefantes em Tsavo, no Quênia
Alguns dos últimos elefantes com enormes presas estão em Tsavo. Uma única presa pode ser vendida por até 6.000 dólares, o suficiente para manter um trabalhador não especializado no Quênia por dez anos

Um deles, Kruba Dharmamuni, conhecido como o Monge Elefante, se dispõe a me acompanhar às lojas de marfim em Surin. Nessa cidade viviam os fornecedores de elefante para o rei do Sião. Hoje os mahouts, tratadores de elefante, são subsidiados pelo governo e vivem à sombra da glória passada – agora dependem da habilidade de seus animais para chutar bolas e entreter os turistas. Barracas vendendo anéis, pulseiras e amuletos de marfim ladeiam a entrada do parque de Surin. “O marfim afasta os maus espíritos”, assegura o Monge Elefante.
O elefante é o símbolo nacional da Tailândia. Reza a lenda que um elefante branco com seis presas penetrou o flanco direito da rainha Maia na noite em que ficou grávida de Sidarta Gautama. O Monge Elefante acredita ter sido esse animal em uma de suas existências anteriores. Embora tenha se vangloriado de contar com 100 mil seguidores ao redor do mundo, em minha visita a seu templo vi apenas um punhado deles. Eles prostraram-se a seus pés com oferendas e receberam em troca amuletos abençoados.
É comum entre os tailandeses o uso de amuletos, às vezes dezenas deles, pois consideram que trazem sorte e os protegem de malefícios e feitiços. Em Bangcoc, o mercado onde são vendidos é enorme, com incontáveis barracas exibindo dezenas de milhares de pequenos talismãs feitos de metal, pó prensado, ossos – e marfim. Os amuletos mais caros chegam a superar os 100 000 dólares. Há revistas, feiras, livros e sites para os colecionadores. Em quase todos os táxis tailandeses veem-se amuletos pendurados no espelho retrovisor. Thaksin Shinawatra, o primeiro-ministro afastado por um golpe, atribui a um amuleto budista o fato de ter sobrevivido a tentativas de assassinato, e o Exército distribui amuletos aos soldados estacionados na fronteira para que não sejam enfeitiçados pela magia negra cambojana.
A grande fonte de renda do Monge Elefante são os amuletos, que ele oferece em curiosa variedade, incluindo imagens de si mesmo e do Buda, assim como fragmentos plastificados de ossos do crânio de mulheres grávidas mortas, óleo puro de cadáveres, terra de sete cemitérios, pelo de tigre e couro de elefante. Os negócios correm tão bem que ele está construindo um templo, Wat Suanpah, em parte inspirado nos populares parques de tigres tailandeses – muitas vezes considerados pelos críticos como negócios de fachada para o comércio ilegal desses animais. O próprio Monge Elefante foi alvo de uma controvérsia parecida, quando uma recente reportagem de televisão mostrou que ele havia obrigado um elefante a morrer de fome para aproveitar o couro e as presas. O monge alega que o animal morreu de causas naturais. Antes da reportagem, ele ganhava 1 milhão de bahts (32 000 dólares) por mês com sua loja, pela internet e em viagens ao exterior. Agora, sua renda caiu para cerca de 300 000 bahts por mês. No entanto, diz ele, em apenas três dias na Malásia ou em Cingapura, ele poderia vender a seus seguidores artigos no valor de mais de 1 milhão de bahts.
A Tailândia tem pequena população nativa de elefantes asiáticos, uma espécie ameaçada e, há muito tempo, fora do circuito do comércio internacional. No interior do país, contudo, as regras são menos rígidas. Mahouts e outros podem vender as extremidades das presas dos elefantes domesticados vivos, assim como presas inteiras dos que morrem de causas naturais. Durante anos, traficantes internacionais se aproveitaram dessa situação, contrabandeando para o país matériaprima africana e misturando-a à asiática.
Conservacionistas referem-se a isso como a “brecha tailandesa”, mas há uma lacuna ainda maior usada por todos os países do mundo. O marfim africano introduzido no país antes de 1989 pode ser negociado no mercado interno. Com isso, todos os que são surpreendidos com ele evocam a mesma justificativa: “Este marfim é de antes da proibição”. Como nunca se fez inventário do estoque global de marfim anterior a 1989, e como ele dura praticamente para sempre, essa brecha é uma defesa sempre válida.
O mercado de marfim tailandês está evoluindo. “Os negociantes estão formando estoques”, comenta Steve Galster, diretor da Fundação Freeland, uma ONG com sede em Bangcoc. “Como a Cites tem histórico de afrouxar as proibições, eles acham que essa é uma aposta segura.”
Tal como as Filipinas, a Tailândia conta com outra facilidade apreciada pelos traficantes: a corrupção. Há pouco tempo, 1 tonelada de marfim africano desapareceu dos galpões da alfândega tailandesa. Quando pedi para ver o restante, os funcionários se recusaram e insinuaram que havia sido roubado por jornalistas. Tão difundida é a corrupção nas Filipinas que, em 2006, o ministério responsável pela fauna silvestre processou funcionários da alfândega pela “perda” de várias toneladas de marfim apreendido.
O entalhador predileto do Monge Elefante, Jom, vive em uma estradinha de terra em local tão remoto que as moitas de vegetação diante de sua casa são, na verdade, vitrines de joias repletas de estatuetas de marfim do Buda. A maior parte desse material é tailandesa. “Este é africano”, comenta o Monge Elefante, apontando para uma peça branca.
“Se eu lhe trouxer marfim africano”, pergunto a Jom, “você o entalharia?” “Dai”, responde. “Não há problema nenhum”, concorda a mulher dele. E basta isso para que o Monge Elefante comece a falar de contrabando. Ele me recomenda cortar o marfim para que caiba na mala, indicando com as mãos o tamanho adequado das peças. “Isso é o que o fazem meus devotos”, conta. Quando desembarcar no aeroporto de Bangcoc, um de seus assistentes estará a minha espera para me conduzir. Tem conhecidos no setor de imigração, mas, se algo der errado, devo dizer que estou levando o marfim ao templo dele. A religião, parece, vai me servir de justificativa.
Como a fé pressupõe uma dose de confiança, o marfim comerciado por motivos religiosos não atrai o mesmo escrutínio agressivo caso fosse esculpido, por exemplo, em peças de jogo de xadrez. O marfim divino desfruta de uma brecha própria.

FONTE: Revista National Geographic Brasil

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