domingo, 11 de dezembro de 2011

CÁRMEN JUNQUEIRA: O ÍNDIO E O PROGRESSO ( "O primeiro contato que a antropóloga Carmen Junqueira fez com os índios da Amazônia foi em 1965, no então recém-criado Parque Nacional Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, que comemora 50 anos em 2011. Durante todos esses anos estudou a fundo a sociedade dos kamaiurás que ali vivem e escreveu diversos artigos e livros sobre eles. Também conhece povos indígenas de Rondônia, Amazonas e Acre e todos os anos faz uma visita a seus amigos do Xingu. Nesta entrevista, a antropóloga fala sobre o que mudou na vida dos índios amazônicos nesses 50 anos" )

AMBIENTE

Marcello Casal Jr/ABr

pensadores da floresta

Carmen Junqueira: o índio e o progresso

O primeiro contato que a antropóloga Carmen Junqueira fez com os índios da Amazônia foi em 1965, no então recém-criado Parque Nacional Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso, que comemora 50 anos em 2011. Durante todos esses anos estudou a fundo a sociedade dos kamaiurás que ali vivem e escreveu diversos artigos e livros sobre eles. Também conhece povos indígenas de Rondônia, Amazonas e Acre e todos os anos faz uma visita a seus amigos do Xingu. Nesta entrevista, a antropóloga fala sobre o que mudou na vida dos índios amazônicos nesses 50 anos


Afonso Capelas Jr
National Geographic Brasil / Especial O Futuro da Amazônia - 05/2010

COMO ERA O XINGU EM 1965 E COMO ESTÁ HOJE? Naquela época, quando se chegava às proximidades de onde está o Parque Nacional Indígena, só havia um vilarejo com quatro ruas. Hoje, a região abriga uma enorme cidade, do tamanho de Campinas, em São Paulo. A explosão urbanizadora começou na década de 1970, quando chegaram os primeiros colonos vindos do Sul do país. Formou-se, então, uma frente de expansão de nossa sociedade nos limites do parque em todas as direções. Vários outros vilarejos foram se tornando cidades com o plantio intensivo da soja. Isso afetou os povos que moram no Xingu. Os rios estão com menos peixes por causa dos defensivos agrícolas nas lavouras que vão parar na água. Do ponto de vista ecológico e de saúde, essa vizinhança afetou muito os índios, embora vivam em uma área protegida. Eles também sofreram interferência cultural do branco quando passaram a frequentar essas cidades. À medida que as duas variáveis - urbanização e frente agrícola - avançaram sobre a região, os índios começaram a ver o mundo de outra maneira. Nos últimos quatro anos a internet passou a fazer parte da vida deles. Os jovens já estão nas redes sociais, enquanto os mais velhos procuram manter a tradição.

QUAL, ENTÃO, SERÁ O FUTURO DOS INDÍGENAS AMAZÔNICOS DIANTE DO ESTILO DE VIDA DO BRANCO? Os mais jovens estão se modernizando, experimentando a tecnologia, fazendo documentários em vídeo, por exemplo. Porém, ainda não admitem casamentos com brancos. Acho que nem ao menos admitiriam que um índio se casasse com um branco e continuasse morando na aldeia. Há modificações na tradição, mas não totalmente. Os maduros de hoje, que serão os velhos de amanhã, não vão mais conseguir impor com a mesma rigidez os padrões de comportamento e os rituais dos idosos de hoje.

A SENHORA ACHA QUE A TRADIÇÃO INDÍGENA TERÁ UM FIM? Toda tradição incorpora novos elementos, mas se mantém de algum modo. Podemos fazer um paralelo com a imigração japonesa no Brasil, que começou em 1908. Hoje você vê as mocinhas descendentes de japoneses com cabelos pintados de vermelho, por exemplo. Adotaram hábitos contemporâneos. Mas, se você conhecer as famílias, percebe que há uma tradição ainda permeando seus costumes. Com os índios, acontece o mesmo. É de esperar que experimentassem nossos hábitos, como o álcool e as drogas, mas não há viciados nas aldeias. Existe uma integridade; as coisas estão sob controle. Isso porque toda cultura, toda tradição viva busca, nela própria, entender o novo. A sociedade indígena é bastante livre. Ela vai buscando respostas na própria tradição, vai apaziguando a novidade no momento em que a interpreta e incorpora apenas o que interessa. Se olharmos 100 anos à frente, sem dúvida haverá grandes modificações, assim como ocorre com a nossa sociedade. Um bom exemplo aconteceu uma vez, quando um piloto de avião conhecido em uma aldeia aterrissou e viu um grupo de rapazes de bermuda. Ele estranhou e disse a eles: "Vocês estão usando bermuda agora?" No ato, um dos índios respondeu, com espirituosidade: "E você, por que não está vestindo roupas como as de Pedro Álvares Cabral?" Ou seja, a pessoa pode não mudar muito, mas altera alguns hábitos. O que o jovem índio quis dizer é que o piloto continuava sendo brasileiro, mesmo sem usar roupas da época do descobrimento do Brasil.

QUAL É O FUTURO DA SOCIEDADE INDÍGENA NO BRASIL? Do ponto de vista político, os povos do Xingu, e do Brasil inteiro, estão cada vez mais conscientes de sua situação. A rigor, eles eram os donos de todo o território brasileiro. Foram massacrados, escravizados, relegados a viver em reservas protegidas. Mas, aos poucos - desde os anos 1970, especialmente quando muitos jovens indígenas foram estudar em Brasília -, passaram a ter um pouco mais de informação. Eles tornaram-se mais cientes de seus direitos, da situação em que estão vivendo, dos perigos que correm. Hoje, praticamente todas as aldeias possuem uma associação, formalmente constituída, que representa seus moradores. Assim, eles podem captar recursos para desenvolver projetos de melhorias para as suas comunidades. Com isso, nossa tecnologia passou a entrar nas aldeias. Há 45 anos os homens eram fortes e musculosos, entre outros fatores, porque costumavam remar durante horas para chegar às roças e usavam machados para derrubar árvore. Agora eles possuem barco a motor e motosserra. Boa parte do dinheiro que conseguem é para comprar equipamentos e combustível. Eles já têm até caminhão, que é importante para locomovê-los em médias e longas distâncias. Não andam os 16 quilômetros de ida e volta para ir até o posto da Funai, como faziam antes. Uma vez disse a eles que estavam ficando obesos porque não faziam mais atividade física. Já as mulheres se mantêm magras porque o cotidiano delas não mudou muito nesses anos.

O QUE É PRECISO FAZER PARA PROTEGER ESSAS COMUNIDADES E SUA CULTURA? Antes de tudo, precisamos melhorar nossa própria sociedade. Poderíamos aprender mais com os índios e seu estilo de vida. Pois, na sociedade deles, não há coerção, ninguém dá ordens a ninguém. Eles são livres e conseguem se sustentar a si próprios sem repressão. Existe, sim, a coerção ritual de suas religiões. Mas, na vida cotidiana do trabalhar, do casar, do construir uma casa, você não tem como mandar. As crianças são criadas dessa forma, e todas elas são educadíssimas. Esse estilo de vida seria um grande aprendizado para nós. Na aldeia, se hipoteticamente uma criança me desse um pontapé, o pai iria calmamente dizer a ela: "A gente não deve fazer isso". Aí, ele viria até mim com um peixe na mão como um pedido de desculpas pela brutalidade do filho. Então, o agir deles é mais desarmado e de peito aberto em comparação ao nosso. Acredito que poderíamos aprender muito a respeito disso com os índios para sermos mais fraternos, menos predadores.

A FUNAI CONTINUA TENDO UM PAPEL IMPORTANTE PARA OS ÍNDIOS? A Funai é um órgão muito desigual. Tem excelentes funcionários, como os que trabalham com tribos isoladas na floresta. Mas ainda há gente antiga e autoritária, daqueles tempos do governo militar em que se davam ordens para o índio. Um desses diretores da fundação certa vez disse que, se ficasse no comando por mais algum tempo, transformaria 10 mil índios em 10 mil encanadores e marceneiros. Quer dizer, os índios sabem que nossa sociedade gosta de gritar e dar ordens. Se você quiser se indispor com um deles, fale alto. É o suficiente para ele perder a confiança em você.

FONTE: Revista Planeta Sustentável

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